ELZA SOARES: a mulher que cantou até o fim

ELZA SOARES: a mulher que cantou até o fim
ELZA SOARES: a mulher que cantou até o fim

Carioca se eternizou como uma das maiores vozes do Brasil com história de luta, miséria, diversidade e reconhecimento. Carreira teve altos e baixos, mas terminou em momento de glória aos 91 anos.

Desde o começo, a música foi uma questão de sobrevivência para Elza Soares. Ela procurou o programa de calouros de Ary Barroso, em 1953, para ganhar dinheiro para cuidar de Carlinhos, seu terceiro filho, que estava doente. Ela já tinha perdido outros dois para a fome.

Logo na primeira interação, público e apresentador constrangeram aquela menina negra, magra e pequena. Ela estava no palco com uma roupa emprestada da mãe. Um vestido muito maior do que ela.

Quando Barroso perguntou “de que planeta você veio, menina?”, Elza foi certeira, potente e não abaixou a cabeça. Essas características se mantiveram firmes em sua personalidade até os 91 anos.

Do mesmo planeta que o senhor, Seu Ary. Do planeta fome

Elza saiu do palco com todos aplaudindo de pé tamanha a expressividade e potência da apresentação. “Nasce uma estrela”, bradou o apresentador.

Era o começo de uma carreira de altos e baixos, pautada pelo suingue, ousadia, revolução, ativismo e, o mais importante, pela meta de cantar até o fim.

Elza Gomes da Conceição nasceu na favela carioca Moça Bonita, hoje conhecida como Vila Vintém, em 1930. Filha de uma lavadeira e de um operário, ela foi obrigada a se casar aos 12 anos, virou mãe aos 13 e já era viúva aos 21.

O jeito rasgado de cantar é justificado pelas latas d’águas que carregou na infância no trabalho como lavadeira e, depois, em uma fábrica de sabão.

Depois do programa “Calouros em desfile”, Elza começou a procurar lugares para cantar. Em 1959, lançou o primeiro single “Se Acaso Você Chegasse”.

O samba de Lupicínio Rodrigues anunciava o gênero predominante na primeira década de carreira: o sambalanço.

Fome, agressões e morte de filhos

Mesmo fazendo sucesso na rádio, Elza Soares foi condenada pela imprensa e pela sociedade ao se relacionar com Mané Garrincha quando ele ainda era casado, em 1962.

O jogador largou a esposa e assumiu Elza após a Copa do Mundo. Mas o relacionamento foi marcado pela violência doméstica e pelo alcoolismo de Garrincha.

Ele morreu de cirrose hepática um ano após a cantora pedir o divórcio, em 1983. Por um acaso do destino, Elza morreu no mesmo dia do jogador, só que 39 anos depois.

Eu sonho muito com o Mané. O maior amor da minha vida foi ele

disse em entrevista ao programa “Conversa com Bial” em 2018.

Além dos dois filhos que morreram ainda recém-nascidos, Elza ainda sofreu pela morte de outros dois: Garrinchinha e Gilson.

Garrinchinha sofreu um acidente de carro, em 1986, aos nove anos. Gilson morreu aos 59 anos, em 2015, por complicações de uma infecção urinária.

Cada porrada que eu levo é como se fosse um beijo. Já me disseram ‘e esse sofrimento seu?’. Eu digo que não foi sofrimento, foi uma escola da vida, eu aprendi muito. É só caindo que você vai se levantar

em entrevista ao Roda Vida em 2002.

Elza deixa 4 filhos, 8 netos e 6 bisnetos.

‘Cantora do Milênio’ ressurge nos anos 2000

Elza começou os anos 2000 consagrada como a “melhor cantora do milênio”, em homenagem feita pela rádio britânica BBC.

Na sequência, gravou o álbum “Do Cóccix até o Pescoço”, com produção de Alê Siqueira, sob a direção artística de José Miguel Wisnik, em 2002.

A música “A Carne”, de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Wilson Cappallette, se tornou símbolo contra o racismo. O disco foi indicado ao Grammy Latino em 2003, como melhor álbum de MPB, e abriu um novo caminho na carreira de Elza.

A cantora diversificou ainda mais a produção musical ao se conectar com a eletrônica e o rap, que ressaltaram o balanço e a voz rasgada característicos.

Sempre quis fazer coisa diferente, não suporto rótulo, não sou refrigerante

afirmou, em 2020, lembrando das gravações da década de 2000.

Tem que acompanhar o tempo. Eu acompanho o tempo, eu não estou quadrada, não tem essa de ficar paradinha aqui não. O negócio é caminhar. Eu caminho sempre junto com o tempo
 

 Cantou até o fim. Mesmo

A música mantinha Elza Soares ativa. Com a idade avançada e até os movimentos reduzidos depois de um problema na coluna desde 1999 após cair em um show no Rio, ela poderia se aposentar, mas fazia questão de continuar produzindo.

Dois dias antes de morrer, Elza gravou um DVD no Theatro Municipal de São Paulo. O lançamento deve ser em março.

Ela estava trabalhando em um novo álbum, mas não há informações sobre o lançamento.

A morte de Elza foi tranquila, principalmente se comparada a todo o sofrimento que teve em vida. Ela estava em casa com familiares e o empresário Pedro Loureiro quando disse não estar se sentindo bem, após uma sessão de fisioterapia.

Um tempo depois, a cantora dirigiu-se aos familiares e disse: "Eu acho que eu vou morrer", segundo Loureiro.

Foi uma morte tranquila, sem traumas, sem motivo. Morreu de causas naturais. Esse, aliás, era um grande medo dela: ter uma morte sofrida, por doença. Hoje, ela simplesmente desligou.

conta o empresário

Voz ativa contra o racismo e do machismo, Elza pode até sair de cena fisicamente, mas suas ideias, músicas e posicionamentos jamais serão esquecidos.

Tem que gritar mesmo, tem que falar, tem que botar a boca no trombone, tem que gritar.

A carreira de Elza foi um grito. Que continuará ecoando para sempre.

Fonte: https://especiais.g1.globo.com/pop-arte/musica/2022/elza-soares-a-mulher-que-cantou-ate-o-fim/?_ga=2.202646609.1569837033.1657641489-1420427107.1657131511